yuri pinheiro
9 min readMay 31, 2021

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As potencialidades do desejo

Aquilo que dá no coração
Que faz perder o ar e a razão
Aquilo reage em cadeia
Incendeia
(Aquilo que dá no coração — Lenine)

Falar de desejo é um exercício que nos permite o distanciamento de algo que nos afeta com toda sua intensidade. Falar de desejo procurando um pouco daquela liberdade luxuosa de que fala Roland Barthes (1989) no discurso de sua Aula inaugural: “Essa liberdade é um luxo que toda sociedade deveria proporcionar a seus cidadãos: tantas linguagens quantos desejos houver: proposta utópica, pelo fato de que nenhuma sociedade está ainda pronta a admitir que há vários desejos” (BARTHES, 1989, p 25). Entendemos, com Barthes, que a sociedade ainda não está pronta para aceitar as potencialidades que residem na diversidade dos desejos, mas, por meio da literatura, o crítico propõe um deslocamento da escrita como solução, visto que

…é precisamente porque ela [a literatura] teima, que a escritura é levada a deslocar-se. Pois o poder se apossa do gozo de escrever como se apossa de todo gozo, para manipulá-lo e fazer dele um produto gregário, não perverso, do mesmo modo que ele se apodera do produto genético do gozo de amor para dele fazer em seu proveito, soldados e militares” (BARTHES, 1989, p. 27).

Então, o que Barthes propõe na inauguração de sua cadeira de semiologia literária no Collège de France é um deslocamento proporcionado pela literatura, na medida em que essa desconstrói imagens estabelecidas por uma ideologia dominante na linguagem, ideologia que faz com que as coisas pareçam que sempre foram assim. Portanto, é na possibilidade de deslocamento através da arte no geral, e pela literatura no particular, que reside a força para lutar contra o discurso autoritário e opressivo que manipula os desejos.

Assim sendo, partindo do pressuposto de Foucault (1996), de que toda produção discursiva “é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8–9), nos questionaremos, a partir da literatura, como os desejos são “teimosamente” representados e, assim, deslocados de seus lugares comuns por meio da poesia. Para falarmos de desejo, amor, corpo e suas intensidades, convidamos para o diálogo a poetisa portuguesa Florbela Espanca que, através de seus versos, representou o feminino ao transformar em linguagem seus conflitos internos, suas paixões, seus amores, seus desejos e seu próprio corpo.

Inicialmente, antes de entrarmos de fato na análise de alguns de seus poemas, cabe-nos fazer uma breve excursão pelos significados de desejo ao longo da história. Para a filosofia o desejo é concebido como uma falta, ou seja, existiria em nós uma lacuna que necessitaria ser recheada, uma necessidade humana que provocaria a atração sexual e/ou espiritual pelo objeto desejado. Para Sigmund Freud, no seu estudo A Interpretação dos Sonhos (1900), o desejo também é concebido como um mover-se em direção a um objeto desejado, só que figura atrelado as noções de sonho, fantasma e recalque, sendo o sonho a realização de desejos inconscientes. Como observa Joel Birman (1999), “Sem o desejo não existe a possibilidade de sonhar” (BIRMAN, 1999, p. 131). Por isso, o sonho, para Freud, é aquele momento em que os desejos que ficam no inconsciente ganham vida e aparecem de forma transfigurada em virtude dos obstáculos colocados pela consciência do sujeito. De todo modo, o sujeito desejoso estaria sempre em busca da satisfação de seus desejos, mesmo que através do sonho.

O autor do texto crítico “O estranho caso de José Matias” (1990), Renato Mezan, postula que “a concretização de um desejo deve trazer ao indivíduo uma sensação de prazer, já que o desejo insatisfeito é vivido como uma tensão interna; a satisfação consiste precisamente em suprimir essa tensão, alcançando o objeto capaz de acalmá-la”. A imagem que vemos é a de um sujeito fazendo de tudo para a realização de seus desejos, algo próximo da obsessão mesmo. Segundo Freud, esse desejo que nos desloca em busca de satisfação é algo da ordem do erótico, por isso o psicanalista “concebeu a sexualidade no campo do desejo” (BIRMAN, 1999, p. 30), porque para ele, o desejo “seria fundador do inconsciente e do sujeito” (BIRMAN, 1999, p. 31).

Quando nos vemos submetidos à busca da realização dos nossos desejos e obrigados a estar em movimento em busca do outro, à procura da parte que falta, estamos funcionando pela lógica da paixão e, como observa Birman (1999), “a paixão é sempre algo que o sujeito sofre como paciente e nunca como agente, pois a paixão toma literalmente o sujeito, apodera-se dele, de maneira a sujeitá-lo” (BIRMAN, 1999, p. 31). Essa força que obriga o sujeito a estar em movimento em busca do objeto desejado foi fixada por Freud a partir do conceito de pulsão. Pulsão para Freud, como aponta Birman (1999), foi definida originalmente “Como uma força constante que, pela exigência de trabalho que provoca, impõe-se ao psiquismo pela sua vinculação ao corporal” (BIRMAN, 1999, p. 37). Essa seria, portanto, a representação da força que marca o nossos corpos, gerando a vontade e o desejo.

Contudo, antes de chegar no corpo, o desejo se forma primeiro na fantasia do sujeito, por isso a pulsão é entendida como algo que vai além do registro biológico da vida, pois

…a sexualidade se inscreve na fantasia, antes de mais nada. Esse é o campo por excelência do erotismo. Não existiria, pois, sexualidade sem fantasia, sendo essa a sua matéria-prima. Seria, então, a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas. O comportamento seria, pois, o elo final de uma longa cadeia de relações, que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito. O sexo seria, portanto, um efeito distante do sexual” (BIRMAN, 1999, p. 22).

Por isso a literatura foi tantas vezes usada por psicanalistas, como Freud, para analisar a mente humana, por ser o lugar por excelência do trabalho com as fantasias e com os desejos dos personagens ali representados.

Partindo desse pressuposto, podemos pensar como a poetisa portuguesa Florbela Espanca transforma em linguagem seus conflitos internos, sua relação com seus desejos, como inscreve seu corpo como lugar erótico e de prazer, como lida com seus fantasmas e com a falta do outro. Só é possível prosseguirmos na discussão dessas questões em Florbela, porque a poetisa constrói uma obra marcada pela expressão de sua vida íntima, aproximando-a daquela tendência poética que seria nomeada mais tarde como poesia confessional, onde a autora explora, com seus escritos, os seus medos, suas angústias, prazeres e desprazeres da vida.

O poema “Amar”, presente no livro Charneca em Flor (1930), é um dos poemas de Florbela Espanca que mais mexeu comigo desde que tive contato com sua obra nas primeiras aulas de Literatura Portuguesa. Do amor que nos atravessa e que entregamos ao outro; das brechas que damos para esse amor fazer morada em nós mesmos e no outro. Esse poema me espanta pela liberdade que esse eu possui ao entregar-se ao desconhecido do amor. Um eu completamente atravessado pelo desejo de amar: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui… além…”, amor que existe sem interesse por um objeto específico, amar pelo ato de amar: “Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente”. Amar a todos e, no final, não amar ninguém é o desejo, e o destino, desse eu: “Amar! Amar! E não amar ninguém!”. É um entregar-se assumindo os riscos de se perder no meio do caminho (“Que me saiba perder… pra me encontrar…”), pois o amor não vem sem riscos.

Com Alberto Pucheu (2018), a partir de seu ensaio “Eu, você, nós, o outro — o amor”, presente no livro Que porra é essa: poesia?, seria possível dizer que “Se há uma lógica do amor, ela é a do outro, a do impróprio, a ferir. Ou, talvez, uma alógica do amor, do outro e do impróprio” (PUCHEU, 2018, p. 249). Portanto, o amor, quando chega, bagunça a casa que existe dentro de nós. Bagunça o nosso modo de viver, de enxergar o mundo, de se relacionar e

Adentrando os nossos corpos, erodindo a solidez do eu, desmantelando conjuntamente o que estamos habituados a falar e a escrever (…) gera uma singularidade que, a partir do encontro da força maior com o desejo, se confunde com o esforço de reaprender (sem que se possa saber) minimamente a viver, a sentir, a dizer, a escrever. (PUCHEU, 2018, p. 250).

É nessa loucura do amor que se lança, sem medo, a figura feminina dos poemas de Florbela, como aparece bebendo a vida no poema “O nosso mundo”: “Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos/Como um divino vinho de Falerno!”.

Buscando falar de seus desejos, de seus amores, de seu próprio corpo, a poetisa portuguesa representa, com sua obra, o feminino e o que há de erótico nele. O erotismo, conforme já discutido acima, faz parte do humano, das suas pulsões e de seus desejos. Contudo, esse tema foi um lugar discursivo privilegiado do homem e Florbela Espanca foi uma das escritoras a romper com a tradição machista de que a mulher não poderia falar de seus desejos e de suas vontades. Ao estudar os poemas eróticos de Florbela Espanca e Gilka Machado, Jussara Neves Rezende (2007) observa que “Falar do próprio corpo talvez tenha sido a forma encontrada pela mulher para se posicionar no mundo e, entendendo-se como pessoa, exprimir suas experiências e revelar a natureza dos seus sentimentos” (REZENDE, 2007, p. 03). Desse modo, a escrita feminina traz para o diálogo o erótico como forma de se colocar como mulher desejosa, constituída de pulsões, fantasias e, consequentemente, buscando a satisfação deles.

No poema “Frémito do Meu Corpo a Procurar-te” há uma intensa busca pelo corpo do outro, representado pelo desejo do toque (“Doído anseio dos meus braços a abraçar-te”) e pela procura do corpo e dos olhos do outro: “Olhos buscando os teus por toda a parte”. É um poema todo construído em torno da fantasia da presença do amado por meio dos cheiros “Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel”. Algo, também, da ordem do sonho, que existe e que se vê, mas que não se pode tocar: “E vejo-te tão longe! Sinto tua alma”. Um corpo que busca o outro em todas as suas instâncias, busca com as mãos, os braço, os olhos, o coração e até com alma, mas é um amor não correspondido: “A dizer-me, a cantar que não me amas… // E o meu coração que tu não sentes, / Vai boiando ao acaso das correntes”. Há, portanto, nesse poema, um jogo entre fantasia e realidade, entre desejo e os obstáculos que esse desejo encontra no meio do caminho até sua realização.

Se pensarmos junto com Freud, essa busca da amada pelo corpo do outro tem como desejo fechar aquela parte que falta, aquela lacuna que precisa ser preenchida, lacuna que já nasceria em busca de completar-se. Assim, essa lacuna estaria marcada no corpo através de suas descontinuidades, simbolizadas pelas zonas erógenas. Ao comentar essa ideia em Freud, Joel Birman aponta que “A continuidade corporal seria então uma ilusão biológica e anatômica, desconstruída pela sexualidade”, sendo essa “fratura corpórea o que possibilitaria a produção do erótico, já que, se o corpo fosse pleno e fechado, o erotismo seria algo da ordem do impossível” (BIRMAN, 1999, p. 33). O descontínuo, a fenda, a incompletude do nosso corpo é o que nos levaria a buscar a completude no corpo do outro, que enxertaria o seu desejo e preencheria essa lacuna.

Penso que Florbela tenha teimosamente procurado pensar e escrever o seu desejo para deslocá-lo daquele lugar autoritário que insiste em dominar os discursos. Se apossou do seu próprio gozo de amor para satisfazer as suas vontades e, assim, permitiu-se sonhar com seus desejos, combatendo a linguagem opressiva com a linguagem libertadora do amor. Por meio da matéria-prima da sexualidade — a fantasia — a poeta fez existir, através de seus versos, o jogo erótico de seus desejos. São versos carregados de vida e que levam aquilo que o nosso corpo está todo marcado: nossas pulsões.

De suas experiências, de suas sensações, de suas buscas em torno de seus amores nasce seus versos que mostram um eu perdido, mas que busca na perdição algum caminho para se encontrar. A busca pela satisfação dos desejos, do afeto e da expressão dos sentimentos aparecem como caminhos desafiadores, mostrando que talvez não tenhamos o controle da situação, pois, mesmo sendo sujeitos constituídos pelos nosso desejos, as pulsões nos colocam diante de muitos riscos, brotando do nosso âmago e impondo a missão de serem satisfeitas. No fim das contas, como na canção de Caetano Veloso, “A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo”.

Referências:

BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1989.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeira Sampaio. 3ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001.

BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. 1. Ed. São Paulo: Editora 34, 1999.

MEZAN, Renato. “O estranho caso de José Matias”. Disponível em www.artepensamento.com.br/item/o-estranho-caso-de-jose-matias. Acesso em 15 de novembro de 2020.

PUCHEU, Alberto. Que porra é essa: poesia?. Rio de Janeiro: Azouque Editorial, 2018.

REZENDE, Jussara Neves. “A escrita do corpo: poemas eróticos de Florbela Espanca e Gilka Machado”. Revista Crioula — Revista Eletrônica dos Alunos de Pós-Graduação Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa DLCV — FFLCH — USP, n.1, 2007.

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